Da 'região dos adeuses' à Grande SP: espanhola escreve livro sobre imigração após guerra civil
25/06/2024
Após os reflexos deixados pela guerra, o pai de Maria Fernandez Iglesias decidiu deixar a Espanha e chegou em Mogi das Cruzes em 1955. A poetisa de 72 anos chegou ao Brasil com 4 anos e escreveu um livro sobre a história dos pais, além de vários poemas dedicados ao "novo lar". Imigrantes falam sobre a vida no Brasil
No Dia do Imigrante, celebrado nesta terça-feira (25), o g1 conta a história da poetisa Maria Fernandez Iglesias, de 72 anos, que chegou em Mogi das Cruzes, na Grande São Paulo, com apenas 4 anos. Ela morava na Galícia, uma região que fica no noroeste da Espanha.
"A vida não estava fácil depois da guerra que arrasou o país. Muitos homens saíam de casa e não voltavam, iam em busca da 'América'. Então meu pai começou a sonhar com essa possibilidade", lembra.
Maria Fernandez Iglesias, ao lado do pai, Jesus Fernandez Souto, e da irmã, Elenice Iglesias
Maria Fernandez Iglesias/Arquivo pessoal
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A "guerra" que Iglesias se refere é a Guerra Civil Espanhola (1936-1939), que deixou dezenas de feridos. "Na época, meu pai tinha mais ou menos 10 anos, mas ele lembrava de pessoas falando que familiares tinham sido convocados e homens que a família escondia nos campos para tentar impedir a convocação, famílias de luto e choro, muito, muito choro".
Após o conflito, o local que ela morava ficou conhecido como "região dos adeuses", justamente por conta da quantidade de despedidas, já que grande parte de homens que partiam não voltavam mais.
Maria Fernandez Iglesias, com a irmã, Evangelina Iglesias, e a mãe, Maria Iglesias de Fernandez
Maria Fernandez Iglesias/Arquivo pessoal
Inclusive, essa situação não foi diferente com Maria. "Minha mãe sabia que ele partiria, só não sabia quando. Até que um dia ele saiu, dizendo que ia à missa, e não voltou mais. Recebemos notícias dele três meses depois, por carta", afirma.
"Ser imigrante é deixar suas origens e suas raízes em busca de melhores oportunidades de vida. Mas levando para sempre, no coração e na memória, costumes, crenças, sons e perfumes que jamais serão esquecidos".
Passaporte de Jesus Fernandez Souto, pai de Maria Iglesias
Maria Fernandez Iglesias/Arquivo pessoal
📍 Chegada em Mogi das Cruzes
Jesus Fernandez Souto tinha 23 anos quando decidiu partir da Espanha, em 1953. A viagem, feita em navio cargueiro, durou 15 dias. "Um conhecido foi buscar meu pai no Porto de Santos e o trouxe para a capital. Ele começou a trabalhar com construção civil e, cerca de dois anos depois, soube que uma fábrica de pianos em Mogi estava contratando e resolveu arriscar", conta.
A chegada em Mogi das Cruzes aconteceu de trem. Na "bagagem", duas portas e três janelas de demolição - na esperança de construir uma casa. "Meu pai trabalhou alguns anos em uma fábrica de pianos, se tornou um ótimo marceneiro e, pouco a pouco, conseguiu comprar um terreno e construir uma casa no Jardim Universo".
Apesar dos planos estabelecidos por Souto estarem dando certo, foi naquela fábrica que aconteceu o primeiro caso de xenofobia.
"Meu pai fazia jornadas muito longas, porque ele queria ganhar mais dinheiro e nos trazer para cá. Alguns dos imigrantes até dormiam na fábrica e chegaram a apanhar dos outros funcionários por conta disso. Eles não aceitavam".
Nota fiscal da compra das passagens do navio que trouxe Maria, a irmã dela e a mãe para o Brasil
Maria Fernandez Iglesias/Arquivo pessoal
Depois de muito trabalho, Maria, a mãe e a irmã chegaram em Mogi das Cruzes em janeiro de 1957. Para ela, a mudança não foi tão difícil porque, como as duas fizeram amizade com outras crianças, a adaptação à língua aconteceu bem rápido.
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"É ir, aos poucos, entendendo o processo... Ser imigrante é deixar suas origens e suas raízes em busca de melhores oportunidades de vida. Mas levando para sempre, no coração e na memória, costumes, crenças, sons e perfumes que jamais serão esquecidos", relata.
"É ser 'estrangeiro' no país onde chega e, visitando seu país de origem, ser chamado pelo gentílico de sua nova morada. É ser de dois países e, ao mesmo tempo, não se sentir pertencente a nenhum... E ter amor pelos dois".
Maria Fernandez Iglesias com o livro 'Adiós, mi España querida!'
Maria Fernandez Iglesias/Arquivo pessoal
🚢 'Adiós, mi España querida!'
A história da chegada dela ao Brasil é contada no livro "Adiós, mi España querida!", publicado no ano passado. "Por conta da pouca idade, minhas memórias da Espanha são raras, mais baseadas no que meus pais contaram. A obra fala sobre a saga dos imigrantes em geral, com foco na história dos meus pais e a nossa emigração, que aconteceu por conta dos estragos que foram deixados depois da guerra".
Visita à vinícola na Espanha, em 2003
Maria Fernandez Iglesias/Arquivo pessoal
Iglesias viajou para a Espanha em 2003, com 50 anos. "Foi a primeira vez que 'visitei' lá. Estava planejado ir com meus pais, mas minha mãe faleceu no decorrer do planejamento e me bateu aquele sentimento: 'se eu tiver que ir, que seja enquanto tenho um deles'. Fui com meu pai, para poder ter as referências de tudo que eles viveram lá".
"Meu pai morreu em abril deste ano, com 96 anos. Agora só me restam as memórias e os vínculos que criei".
Comemoração das 'Bodas de Ouro' de Maria Iglesias de Fernandez e Jesus Fernandez Souto
Maria Fernandez Iglesias/Arquivo pessoal
'Minha pátria amada' ❤️
"Vínculo". Segundo uma das definições do dicionário, essa palavra significa algo "que liga afetivamente". É exatamente esse sentimento que a poetisa Maria Iglesias relata em suas publicações. "Amo o Brasil e amo, inclusive, Mogi das Cruzes, que me adotou e eu chamo de minha pátria amada. Já escrevi muito sobre a minha nova morada e fiz até um poema em comemoração ao aniversário da cidade", afirma.
"Não sou fruto do teu solo
em outras terras, minha semente germinou
mas foi acolhida no teu colo
que a minha família se edificou.
Dos teus quatrocentos e sessenta e três anos
uns tantos, compartilhei contigo.
Foi aqui que realizei meus planos
e em teu seio encontrei abrigo."
Esse poema foi feito em homenagem à cidade no ano passado. Nele, a poetisa também descreve a riqueza do Cinturão Verde, a variedade de imigrantes que ela encontrou aqui e, também, a paisagem que mais a deixa encantada: a vista da cidade do alto da Mogi-Dutra.
Maria Fernandez Iglesias ganhou o título de 'Cidadã Mogiana' em março de 2024
Maria Fernandez Iglesias/Arquivo pessoal
Esse carinho é tanto que, em março deste ano, Iglesias recebeu o título de "Cidadã Mogiana". "Uma estrangeira recebendo um título desse? Imagina a honra!", brinca.
"Não penso em voltar a morar na Espanha. Mogi das Cruzes foi o lugar que me acolheu. Há mais de 60 anos é aqui que eu chamo de lar".
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